A reforma política e a fé democrática

interna_LeoPaíses com democracias mais antigas nos ensinam que, de tempos em tempos, a fé democrática precisa ser renovada. Bem diferente do que possa parecer, isso não acontece apenas nas eleições e nos momentos de júbilo. Pelo contrário, os maiores testes e aprendizados ocorrem nos momentos de crise.
A fé democrática é a confiança que as pessoas sentem em relação ao princípio de que instituições controladas pela sociedade não apenas são as melhores em termos de resultados sociais e econômicos, como também são as mais corretas do ponto de vista ético.
Ela entra em crise quando há uma percepção generalizada de que o governo e as demais organizações que orientam a vida pública (como judiciário e legislativo) se mostram insensíveis às demandas das pessoas. Os principais sintomas dessa “doença” são impunidade, falta de prioridade e de cuidado nos gastos públicos, déficit de transparência, a falta de diálogo e a exclusão de grupos do processo de decisão.
As democracias vivem ciclos que alternam crise e reforma. A capacidade de encontrar soluções para seus problemas sem ter que recorrer a rupturas é o grande elemento que a diferencia de outros regimes. Enquanto crises em ditaduras provocam o desmonte de todo o país, em situações democráticas, as crises levam ao aprimoramento das instituições, às mudanças de comportamento e à evolução política.
Há vários exemplos sobre isso na história do mundo e do Brasil. Nos Estados Unidos, durante muito tempo, a democracia eleitoral conviveu com a discriminação racial no seu mais alto nível. As lutas pelos direitos civis quase lançaram alguns estados em situação de conflito aberto. Hoje, a despeito dos muitos ressentimentos e das desigualdades que ainda persistem, o país é governado por um presidente negro.
No Brasil, um período longo de inflação transformou a responsabilidade e a transparência fiscal dos governantes em um valor inegociável. Da mesma forma, ao longo dos anos, o controle popular vai conseguindo extinguir privilégios que datam de tempos remotos, como o fim do voto secreto dos deputados, a extinção de remunerações extras, o impeachment de presidentes comprovadamente corruptos sem o rompimento do regime democrático, as políticas de superação de desigualdades sociais, de gênero e de raça e a inclusão educacional, entre muitos outros avanços.
Mas eis que estamos face a face com outro desafio: a reforma política. Não é de hoje nem deste ou daquele governo, que estamos assistindo ao desgaste da confiança da população em relação aos partidos políticos, aos políticos e aos governos de maneira geral. As jornadas de 2013 foram apenas o ápice de um processo que vem, de escândalo em escândalo, roendo a legitimidade da democracia brasileira.
É curioso que hoje vivemos uma situação paradoxal no Brasil. Enquanto avançamos profundamente em alguns temas, outros parecem parados no tempo, congelados pela resistência de interesses, que não fazem mais parte do pensamento e dos valores prezados hoje pela sociedade. Por isso, apesar de haver consenso sobre a necessidade de mudar o país, não se consegue fechar uma agenda ampla e orgânica a respeito do que pode ser feito.
Na minha avaliação pessoal, o primeiro passo para começar a resolver esta equação é traçar um diagnóstico correto. Nesse aspecto, acredito que o objetivo da reforma deve ser devolver confiança às pessoas, modificando os aspectos que mais incomodam a população.
Por isso, seria muito bem vindo se, antes dos especialistas falarem sobre as mudanças dos sistemas eleitorais para os modelos americano, alemão ou japonês, que nós pudéssemos refletir primeiro em grandes fóruns promovidos dentro e fora do Congresso, sobre o que realmente pode ser feito para renovar a fé democrática das pessoas.
Voltando às manifestações de 2013 e aos seus milhares de cartazes, ouso propor uma lista de prioridades. Em primeiro lugar, é preciso combater a impunidade, pois ela é altamente ofensiva. As pessoas ficam indignadas quando um caso de corrupção ocorre e muito mais revoltadas quando pensam que o culpado ficará impune ou que pegará uma pena leve.
Essa discussão também envolve a velocidade da apuração e do julgamento. A lentidão cria no cidadão o mesmo efeito provocado pela ausência de punição. Lembrando a frase eterna de Rui Barbosa, “quando a justiça tarda, ela já falhou”.
O segundo ponto é o custo do sistema político. As campanhas são muito caras e a discussão não pode ficar restrita ao tipo de financiamento adotado, se público ou privado. É preciso estabelecer limites de valores para as campanhas, estabelecendo tetos máximos para as campanhas. Haverá sempre quem queira furá-lo com o caixa 2, mas aí o problema seria de fiscalização.
O terceiro ponto é a eleição para o Congresso, Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores. Hoje, de cada dez votos dados para candidatos a cargos no legislativo, apenas três viram mandatos. Se 70% dos eleitores não escolhem candidatos vencedores, como podemos cobrar das pessoas que fiscalizem o seu representante?
Além disso, eleições servem para reunir milhões de opiniões diferentes e transformá-las em um caminho mais ou menos único. No legislativo, o sistema de listas abertas faz o contrário, desagregando ao invés de agregar, privilegiando a defesa de interesses específicos em detrimento das questões gerais da nação.
Mesmo uma agenda tão pequena como essa certamente levantará muita polêmica. No entanto, as diferenças estão aí para serem resolvidas e o país precisa muito passar neste teste, para que um novo período virtuoso seja iniciado.
Há outros temas importantes, como o voto facultativo, as regras de financiamento e o uso de um plebiscito para aprovação das mudanças, por exemplo. Mas o importante é saber que o Brasil tem maturidade e gente inteligente em número suficiente para solucionar seus problemas, desde que se parta de uma contextualização correta e de um diagnóstico estratégico preciso, que tenha como norte a renovação da fé das pessoas nas instituições democráticas.
Por Leonardo Barreto, Doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília e coordenador acadêmico da Fundação Republicana Brasileira*