O Estado não exerce o monopólio de uma violência arbitrária. Tem apenas o da violência legítima, sujeita a regras, limites e controles.
O Congresso aprovou e a presidente Dilma Rousseff sancionou o projeto de minha autoria que tem como finalidade reduzir o número de vítimas em ações policiais. A nova lei determina que as polícias observem sempre os princípios da legalidade, da necessidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, usando prioritariamente equipamentos de menor poder ofensivo durante sua atividade.
Tornou-se ilegal o uso de arma de fogo contra pessoa desarmada em fuga ou que não represente risco imediato à vida dos policiais ou de terceiros, bem como a realização de disparos contra veículos que desrespeitem bloqueios policiais, a não ser, mais uma vez, que a integridade dos agentes ou de terceiros seja posta em risco.
A lei exige que os policiais tenham treinamento para usar instrumentos projetados que não causem mortes ou lesões permanentes, e disponham deles quando em ação. A lei exige também que os agentes passem a ter o dever legal de prestar socorro a eventuais feridos e comunicar o fato, imediatamente, às famílias deles.
Não é uma proposta improvisada. Minha fonte de inspiração foi o Código de Conduta para Policiais proposto pela Organização das Nações Unidas e adotado com êxito em muitos países. O texto foi debatido durante quase dez anos por parlamentares de todos os partidos, por especialistas em segurança e representantes da sociedade civil.
A nova lei começa a enfrentar, surpreendentemente, resistências em seguida à sua promulgação, como se ela fosse enfraquecer a autoridade policial. É uma grave confusão entre autoridade e violência.
Entre 2005 e 2009, a Polícia Militar de São Paulo matou 2.045 pessoas, enquanto a polícia inglesa, em dez anos, matou duas. Quando observamos a ação policial, especialmente em favelas e periferias, encontramos uma regularidade chocante: quase sempre as vítimas são pobres, jovens e negros.
Um jovem pode correr da polícia porque ficou assustado, porque ouviu dizer que ela maltrata pessoas, porque já presenciou humilhações de amigos ou até mesmo porque tem um cigarro de maconha no bolso. Em nenhum desses casos, e em diversos outros que podemos imaginar, merece morrer. Em nenhum caso pode ser alvejado pelas costas se não estiver colocando em risco a vida de alguém.
Essas mortes, em geral, não emocionam. Antes mesmo de enterradas, as vítimas são jogadas na vala comum dos estereótipos. Logo viram números, deixam de ser pessoas. Apagam-se as histórias de vida, a convivência com parentes e amigos, os gestos bons, as amplas possibilidades que cada um tem diante de si.
O Estado não tem o monopólio de uma violência arbitrária, mas somente da violência legítima, aquela que, por definição, está sujeita a regras, limites e controles.
O espetacular desenvolvimento da racionalidade técnica permitiu que nossa espécie se protegesse de quase todos os perigos externos, como a falta de alimentos e de abrigo ou a ameaça de predadores.
Porém, uma espécie –só uma– ainda ameaça seriamente a nossa existência: a própria espécie humana, tantas vezes incapaz de conviver consigo mesma.
Para enfrentar esse perigo precisamos incrementar a capacidade de nos comunicar uns com os outros buscando estabelecer e disseminar valores comuns, fins compartilhados, comportamentos legítimos.
A ação policial deve se inserir nesse esforço civilizatório difícil e prolongado, que tem de ser capaz de superar erros e recuos. Muitos dirão que defendo uma utopia. Talvez. Afinal, sigo o maior de todos os utopistas, aquele que propôs o primado do amor em um mundo que estava dominado pela barbárie.
MARCELO CRIVELLA, 57, é engenheiro civil, é senador pelo PRB-RJ. Foi ministro de Estado da Pesca e Aquicultura (governo Dilma)